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Era feliz, até que, então, começou a ler.
Sentiu falta do drama. De uma anormalidade
das relações. Das palavras tão inofensivas,
que, amotinadas, deixavam feridas mais fundas
que o corte da faca mais amolada na pele.


Sentiu falta do verde. Dos campos infinitos.
Das belas flores cujo perfume enfeitiçava,
enlouquecia, envenava. Dos vivos frutos
cuja cor jamais vira de perto e cujo sabor
nenhuma química poderia replicar.


Sentiu falta das paixões. Da sequela agridoce.
Da dor da distância, que tornava o sentimento
mais potente e enebriante. Do alívio do
encontro, do toque, do desespero. Da vã
desconfiança de qualquer sopro do real.


Sentiu falta da poesia. Da razão tirada
da emoção. Do interior abstrato ali exposto
em versos concretos, mas tão sensíveis, que não
pareciam sair da mão do poeta, e sim
do etéreo movimento da vulnerável alma.


Sentiu falta do medo. Dos arrepios da
ansiedade. Da angústia do fim de mais um
capítulo, que não cedia espaço para a
cura, mas que, mesmo assim, deixava o corpo em febre,
prendendo-se à mais vã e urgente das esperanças.

 

Sentiu falta, por fim, da mudança. Das mais várias
vidas vividas. Do recomeço após o fim
doído, feliz ou triste, na pele de um novo
ser. Do novo drama, do novo verde. Das novas
paixões, das novas poesias. E dos novos medos.


E quis tornar a realidade literatura.
Criou seus monstros, conquistou novos ares e
alimentou verdes obsessões. Abandonou
os livros. Fez o caminho inverso do poeta
e transformou sua poesia no sentimento.


E descobriu que aquele sentimento era falso.
E entendeu que não podia recomeçar em
outra pele. Dramas outros, verdes outros, sim.
Outras paixões, medos e poesias viriam.
A realidade aqui era o retrato da vida.

Mas, mesmo que a cada mudança de pensamento
sentisse ser outro alguém, estava preso àquele
corpo. Sua vida era uma só, finita e mortal.
E à ela devia lealdade, enquanto vivo.
Era infeliz, até que recomeçou a ler.

Era feliz

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