
words grow in trees
Marina Morais
Contei até nove antes de sair do quarto, caso contrário minha família morreria.
Na verdade, eu tinha perfeita consciência de que isso não aconteceria. A verdadeira razão pela qual minha contagem básica não chegava ao dez tinha origens bem mais filosóficas e matemáticas. Dez não tinha nada a ver com seus nove predecessores. Era um número de dois dígitos; era a primeira casa decimal; era formado pela combinação de um número que já tinha sido utilizado e outro que acompanhava silenciosamente todos os demais; era divisível por dois, um número muito pequeno para um grupo, e cinco, por sua vez muito grande; era, enfim, muito convencional para os meus gostos peculiares.
Fingir para os meus pais que tinha TOC, porém, era uma ótima maneira de me livrar de compromissos indesejáveis. Meu psicólogo, um amigo de um amigo da família que dava um desconto camarada bastante compatível com a sua falta de talento, sabia que eu não tinha transtorno nenhum, mas me mantinha como paciente pela grana extra no fim do mês. Era um acordo mudo. Todas as quartas-feiras, às 15h09 (um charme adicionado só por segurança), eu entrava na sala, abria um livro e matava o tempo enquanto o doutor Juarez Andrada fazia anotações de pacientes que de fato precisavam de ajuda – embora eu tivesse séries dúvidas de que a obtiriam daquele profissional em especial.
Ia longe para alimentar minha mentira. Tirava nove em provas que poderia facilmente ter fechado com nota máxima; pulava o último degrau da escada de acesso à casa dos meus avós, que contava com dez degraus no total; jogava fora o primeiro bombom da minha caixa de chocolates favorita para que restassem apenas nove; e até consegui ficar de fora da festa de dez anos de conversão espiritual dos meus pais, por razões óbvias, fato que eles justificaram com uma viagem fictícia para fazer uma prova nacional importantíssima.
Essa era a parte mais divertida de toda a encenação: ver meus pais se desdobrarem para inventar mentiras que justificassem minha frequente ausência. Admitir o meu problema sempre tinha estado fora de questão. Uma vez, entreouvi uma conversa entre eles e algum parente próximo, provavelmente um dos meus avós, em que explicavam que faziam aquilo para me proteger, afinal eu não gostaria que minha condição se tornasse pública – um pedido que eu jamais tinha feito, ou mesmo sugerido.
Às vezes, perguntava-me como a farsa chegaria ao fim. Doutor Juarez Andrada encontraria um paciente para ocupar o meu horário e revelaria aos meus pais que nunca tinha havido problema algum? O cansaço de manter o falso TOC me levaria a gradualmente deixar de lado a suposta obsessão, fazendo com que eles acreditassem que eu havia finalmente me curado? Em um surto de stress ou pena, eu mesma admitiria que os tinha enganado todos aqueles anos só para que me deixassem em paz quando eu precisava de espaço? Era divertido confabular a respeito do futuro, sobre o qual a única certeza que eu tinha era de que a minha suposta condição deixaria de existir em algum momento.
Por isso, quando contei até nove antes de sair do quarto naquele dia, a surpresa me tirou o fôlego. Não era meu quarto. Não era minha casa. Não era minha família. Era o quarto de um garoto com quem eu vinha paquerando havia meses. Frequentávamos o mesmo curso de francês, mas não tínhamos nenhum amigo em comum e ele não sabia nada sobre mim. Depois de várias semanas, tomei coragem e puxei papo quando vi os adesivos de God of War na parte interna do caderno que ele usava na aula. Um mês depois, ele me convidou para ir até a casa dele e jogamos videogame durante horas.
Não entenda minha atitude de inventar uma doença para evitar eventos sociais como prova de introversão e timidez. Só tinha consciência de que a vida era curta demais para desperdiçar com pessoas indesejáveis em ocasiões menos desejáveis ainda. Isto posto, nunca fui propensa a crises de ansiedade ou mesmo de vergonha parcialmente justificável. Quando achei que já tínhamos enrolado muito tempo, tomei a iniciativa e tasquei-lhe um beijo.
Confusão, estranhamento, explicação, desculpas, compreensão, despedida. Ele não ficava muito com garotas, embora seu último namoro tivesse sido com uma. Mesmo que esse não fosse o caso, de qualquer forma, aquela tinha sido uma relação de amizade aos olhos dele e eu tinha lido os sinais errado, disso eu tinha perfeita consciência. Entretanto, quando abri a porta para deixar aquele quarto e sair daquela casa, um tanto quanto balançada pela experiência frustrada e por não ter tido a capacidade de entender a situação antes que chegasse àquele ponto, vi-me inerte, incapaz de mover um músculo até que minha contagem súbita chegasse a nove.
Naquela quarta-feira, não tirei livro algum da mochila. Sentei-me, encarando-o, até que o doutor Juarez Andrada finalmente fechasse o arquivo com fichas de outros pacientes e me encarasse de volta. Contei o que tinha acontecido e perguntei o que ele achava da situação. Em resposta, citou-me Freud e Lacan em uma mesma frase, confirmando minha suspeita de que era uma fraude maior do que meu TOC encenado. Saí de lá ainda mais frustrada. Pensei em pedir aos meus pais que me arrumassem um outro psicólogo, mas não queria correr o risco de ser desmascarada no momento em que mais precisava entender o que estava acontecendo.
Minha única saída era policiar minhas próprias ações. Percebi-me impossibilitada de fechar uma prova da qual tinha certeza absoluta de todas as respostas. Falhei ao tentar pisar em todos os degraus da escada de acesso à casa dos meus avós. Apertei o botão do décimo andar do condomínio em que eu morava só para testar meus limites e me vi pressionando o nove quando o painel do elevador indicava que ele já havia chegado ao oitavo andar.
Saí do elevador e desci as escadas até o térreo, onde me aconcheguei no nono quadrado da amarelinha pintada no chão do playground e tentei entender o que estava acontecendo. Fazia quase oito anos que tinha começado a demonstrar sinais daquela condição – e, por demonstrar, quero dizer fingir na cara dura que os tinha. Tinha sido tudo um teatrinho para evitar uma grande festa de aniversário de dez anos que meus pais queriam fazer para mim, convidando pessoas que eu ainda mal conhecia, tendo acabado de mudar de cidade e, portanto, de escola; além de contratar o elenco completo de um grupo de teatro que encenava Hannah Montana quando eu era claramente uma fã de Dragonball, Pokémon e Power Rangers. Desde então, nada de muito ruim tinha acontecido a mim. Ou à minha família. Tentei com todas as forças repelir a pergunta que tinha o poder de mudar tudo, mas era impossível:
E se aquilo realmente estivesse dando resultado?
Não tinha por que parar agora, se não estava me fazendo nenhum mal – nove ainda era uma nota boa, um bombom a menos não fazia falta e pular um degrau jamais tinha sido um obstáculo. Como eu poderia ter certeza de que, no momento em que eu assumisse que tinha capacidade de conviver em harmonia com o número dez, tudo continuaria bem, como tinha estado nos últimos sete anos? Uma vez tomada aquela decisão, no entanto, seria difícil voltar atrás. Era um tipo de vício. E eu sabia. Eu sabia.
Levantei-me do chão, dei nove passos, mais nove passos, mais nove passos. Subi até o nono andar. Desci as escadas até o meu apartamento, três andares abaixo, em nove segundos. Girei a chave na porta nove vezes antes de abrir. Dei nove longos suspiros quando sentei na cama.
Tranquei o choro e enxuguei o rosto quando a nona lágrima caiu.